Minha viagem à Antátida

Minha viagem à Antátida

Por Marisa Ferraz
A viagem de avião até Ushuaia, considerada a terra do “Fin Del Mundo” já é por si só memorável. Voar sobre lindas montanhas nevadas nos dá uma prévia do que ainda virá.

Temos um dia na cidade e fazemos uma excursão ao “Parque Nacional Tierra Del Fuego” até a Baía Lapataia, com suas águas verde-esmeralda. Árvores com copas envergadas a 90° são o testemunho dos ventos que dominam essa região. Após um bom churrasco argentino, estamos prontos para começar nossa aventura.  

Adentrar o cais onde estão ancorados os imponentes navios quebra-gelos é fascinante e a adrenalina começa a circular no corpo. Somos cerca de 100 pessoas de diversas nacionalidades no navio russo Lyubov Orlova: australiana, japonesa, indiana, russa, italiana, belga, polonesa, inglesa, escocesa, portuguesa, sul-africana, americana e... eu como única representante da brasileira. 

A recepção no navio conta com uma palestra, o “Mandatory Lifeboat” (treinamento de emergência) e um coquetel. A sala de refeições tem algumas peculiaridades interessantes para quem vai cruzar o Drake Passage, local conhecido por apresentar grandes tempestades: mesas fixas no chão, cadeiras presas com cordas e toalhas molhadas para evitar que copos escorreguem! Felizmente nenhum incidente no caminho de ida. 

É uma delícia acordar de manhã cedo com um acolhedor “Good Morning” da Susan, nossa líder, no alto-falante dentro das cabines. E as refeições... ah, as refeições... todas cinco estrelas, com comidas de ajoelhar. Como temos o dia todo de viagem, assistimos a diversas palestras interessantes com o staff de especialistas do navio. Akos, especialista em aves, nos deixa boquiabertos ao mostrar que o albatroz-errante, que habita a região, possui uma envergadura de 3,5 metros. Louis nos relata a época de ouro dos primeiros e heróicos exploradores deste continente. Art, geólogo experiente, nos ensina sobre os vários tipos de rochas e de formações de gelo que se pode encontrar na Antártida. Nosso fotógrafo oficial Otto nos mostra imagens maravilhosas tiradas em viagens anteriores. Jamie, biólogo marinho (e comediante nas horas de folga), nos conta sobre a fascinante vida das focas, baleias, pinguins e outros seres da região. 

Navegar em alto-mar é uma experiência única! Além da sensação de pequenez e solidão, quando não se é possível ver nenhuma terra pelos 360° do horizonte, a cor do mar é inacreditável: um azul-cobalto que não se consegue ver em nenhum outro lugar. Passamos a Convergência Antártica, uma região que cerca o continente antártico onde há o encontro da Corrente Antártica Circumpolar com as correntes quentes do sul dos Oceanos Atlântico, Índico e Pacífico. É um limite natural entre duas regiões de vida marinha distinta e de climas diferentes. É marcante a queda de temperatura ao cruzarmos essa região. Agora o frio chegou com força e o deck do navio fica coberto por uma camada de gelo escorregadio. 

Sempre que acordo, a primeira coisa que faço é ir ao deck, ver o horizonte sem fim e sentir o frio polar. Ainda estamos longe do continente, mas já avistamos os primeiros pinguins: um grupo passa nadando ao lado de nosso navio dando lindos saltos na água. Duas baleias Humpback, mãe e filha, também nos dão as boas-vindas, dando saltos belíssimos ao longe! Não consigo parar de sorrir.

As saídas de barco para as excursões nas ilhas e no continente antártico exigem um preparo à parte: cinco blusas (malha de neve colada no corpo, camisa, dois casacos de lã e o grande casaco de neve), três calças (malha de neve, calça e calça à prova d’água), para os pés duas meias de lã e botas de neve, além dos acessórios (duas luvas, gorro, tapa-ouvidos, óculos escuros, protetor solar). Um processo demorado. E mesmo assim ainda se sente frio.  

 

Para se ir do navio até a terra firme usam-se os Zodiac, botes infláveis motorizados muito eficientes. O problema é tentar entrar nesses botes com o forte vai-e-vem do mar batendo na escada lateral do navio. Muito engraçado. 

 

Primeira saída: Ilha Aitcho. Andar em uma área repleta de pinguins Chinstrap e Gentoo, ouvir seus sons enchendo o ar, ver seus ninhos e filhotes sendo cuidados é uma emoção tão grande que não é difícil cair no choro. É um mar de pinguins à sua volta! E eles não ligam a mínima para a sua presença. Além deles ainda podemos ver elefantes marinhos, focas, geleiras imponentes e ossos de baleias. Um dia inteiro com um largo sorriso estampado no rosto! 

Todo o retorno ao navio é imediatamente e obrigatoriamente seguido de uma lavagem nas botas: procedimento que evita o transporte indesejado de material estranho de uma ilha para outra. Além disso, é imperativo assinar uma listagem a cada saída e chegada no navio, precaução para não se correr o risco de esquecer alguém nas ilhas!... 

Desembarcamos na Ilha Half Moon sob um vento cortante, frio intenso e forte nevasca batendo em nosso rosto. Mas as colônias de pinguins Chinstrap parecem não se incomodar com isso. A paisagem de escarpas e rochedos cobertos de neve é fascinante e assustadora ao mesmo tempo. Na praia a carcaça de um grande barco antigo de madeira repousa sobre as pedras cobertas de neve e fileiras de algas vermelhas. 

A ilha vulcânica Deception ainda possui tristes restos de instalações baleeiras do passado e vários ossos de baleias espalhados pela longa praia. O tempo bom nos favorece com uma linda visão do Neptune’s Bellows: uma praia escura com águas verde-esmeralda vista do alto. Aqui, devido à atividade vulcânica da ilha, se tem a oportunidade de mergulhar no gélido mar polar (com temperatura de 02 °C) sem morrer de imediato. É claro que não vou perder essa! Eu e poucos outros corajosos nos aventuramos a mergulhar. Essa experiência única fica registrada em um certificado que atesta que “além de ser um ato de extrema coragem é também de incomparável loucura”, o que nos dá o direito a fazer parte do famoso Clube de Mergulho Polar Antártico! No retorno ao navio fomos calorosamente recepcionados com uma dose de rum. 

Nosso primeiro desembarque no continente é no Paradise Bay. Suar em bica ao subir uma montanha para se apreciar a baía de cima, a parede de glaciares no contorno e nosso navio ao fundo sob um silêncio só quebrado pelo vento. Que paz!

Neste dia, ao fazermos um cruzeiro nos Zodiac, temos a sorte tremenda de um lindo encontro com baleias Minke que nos rodeiam em nossos botes. Elas gentilmente saem da água com suas cabeças enormes apontadas para cima, nos olham brevemente com seus olhos meigos para depois submergir calmamente. De tão perto, quase conseguimos tocá-las com nossas mãos. E de tão abestalhada que fico, não tiro uma única foto... Uma experiência para a vida! 

O Port Lockroy, base inglesa, tem uma colônia imensa de pinguins Gentoo que rodeiam a base tão de perto que quase entram dentro de casa! O lugar é uma mistura de museu com antigos utensílios usados por pesquisadores e viajantes e onde também funciona um correio, de onde se pode enviar postais para o mundo inteiro com selos autenticamente carimbados na Antártida. Deixo meu nome no livro de visitas: Marisa Ferraz – Brazil! 

Jougla Point, cheio de pinguins Gentoo e Chinstrap, tem espetaculares esqueletos de baleias quase inteiros deitados nas pedras e nos pedaços de gelo que bóiam na orla. 

E quem diria que é possível fazer um churrasco em plena Antártida? Somos convidados para ir ao deck do navio para comer, beber e confraternizar nas mesas ao ar livre. Impossível relaxar com tanto frio, mas a cerveja foi certamente uma das mais geladas que já tomei...

Passamos pelo Canal Lemaire às 6h de uma manhã ensolarada. O canal, estreito, tem paisagens deslumbrantes de grandes montanhas e altas escarpas nevadas que se elevam ao nosso lado e passam bem junto ao navio enquanto ele avança em marcha lenta. De tirar o fôlego.

O local mais ao sul que colocamos os pés (65° 15’ S) fica no posto ucraniano Vernadsky, onde temos a oportunidade de visitar as salas dos pesquisadores que moram no local e suas estações de trabalho. O posto tem um ótimo bar (Faraday) coberto de flâmulas, fotos, bandeiras, sutiãs (!!!), canecos e diversos souvenirs trazidos pelos visitantes do mundo inteiro. Se soubesse disto, teria levado uma garrafa de cachaça para deixar lá. 

Os pinguins Adelie, com suas típicas cabeças-chata e os Macaroni, de topete amarelo, não são muito comuns e é preciso ir a lugares específicos para vê-los. A ilha Petermann tem boas colônias dos Adelie. Em meio a eles, grandes pedras quebradas como se fossem fatias de pão francês são testemunhas da incrível oscilação de temperatura nesse local. Nesta ilha, pesquisadores que, inacreditavelmente dormem em uma barraca, pesquisam as colônias de pinguins, cada uma identificada com um número pintado em laranja na rocha que serve de base para os ninhos. 

 

Temos a sorte de testemunhar a quebra de uma das colossais encostas de gelo em Neko Harbour, ao subimos uma montanha para apreciar a vista da baía e das altas paredes de neve dos glaciares. Uma gigantesca quantidade de gelo cai no mar e forma um pequeno tsunami que avança até a praia fazendo um barulho forte e peculiar. Fascinante! Para descer na montanha? É só escorregar no grande tobogã natural de gelo. Uma diversão. 

Na ilha Danko é interessante ver as “avenidas” que se formam na neve pisada constantemente pelo vai-e-vem dos pinguins em sua labuta diária de construção dos ninhos, feitos de pequenas pedras. O trabalho árduo consiste no transporte de pequenas pedras, uma a uma, com o bico, desde a praia lá embaixo até o alto das montanhas, onde fazem seus ninhos. Que trabalhão. Ao passar inadvertidamente próxima a um ninho muito bem camuflado de gaivotas com dois filhotinhos, sou literalmente atacada pelos pais que dão rasantes em minha cabeça tentando me bicar e me botando para correr dali! 

Um passeio nos Zodiac à noite na baía Wilhemina se transforma em um dos momentos mais lindos da viagem. Com o tempo limpo e claro, o céu azul e o sol brilhando até as 23h, vemos os mais lindos, branco-azulados e resplandecentes icebergs flutuando em câmara lenta ao nosso redor. A variedade de tonalidades de azul e de formatos e tamanhos é infinita. Sobre eles, ás vezes vemos grupos de pinguins ou focas tomando sol. Ao pôr-do-sol as tonalidades dos icebergs passam do azul para o rosa e o céu fica vermelho-alaranjado. Fico imaginando a dificuldade dos viajantes de alguns anos atrás, antes das câmeras digitais, quando tinham que repor os filmes de 36 poses. Em minutos tiramos centenas de fotos. 

Um leopardo-marinho dormita sobre um dos icebergs e, à nossa aproximação, pula na água. Nosso guia prontamente liga o motor e se afasta, nos explicando que, ao contrário das focas de Weddell ou as Crabeaters, muito amigáveis, esses leopardos-marinhos são predadores perigosos pois podem morder os Zodiac por baixo d’água com seus dentes afiados derrubando todos na água e fazendo um belo jantar com carnes internacionais... 

Em nosso último dia neste continente é difícil não ficar um pouco triste. Fico um bom tempo no deck gelado à noite ouvindo MP3, vendo as últimas luzes do dia (por volta da meia-noite) e lembrando tudo o que vivi e vi nesta terra fascinante. Por mais que eu tente descrever aqui esta aventura, a cada vez que leio vejo o quão pobre é minha descrição, em comparação com as emoções que senti nesta viagem.

Mas nossa aventura não termina aí. Ao contrário de nossa ida, bem tranqüila, em nosso caminho de volta temos uma boa amostra do que significa cruzar o famoso Drake Passage! Com 650 km de Oceano Antártico entre o fim da América do Sul e a Antártida, é uma das zonas com as piores condições meteorológicas marítimas do mundo. E uma enorme tempestade toma nossa embarcação sem dó. Ondas fabulosas cobrem por completo a proa de nosso grande navio que, nessas condições, parece uma pequena casca de noz sendo engolido na tormenta. De minha cabine posso contar três segundos a cada vez que a escotilha fica submersa e três segundos a cada vez que emerge. Isso durante horas. E toda aquela compacta massa de ferragens que compõe nossa embarcação treme e range a cada vez que o casco bate na água ao despencar de uma onda gigantesca. Eu, particularmente, acho tudo fascinante, mas nosso médico de bordo, Gary, teve um pouco de trabalho neste dia distribuindo remédio contra enjôo. Agora entendi o porquê das mesas do restaurante fixas no chão e as cadeiras amarradas. Sobrevivemos!

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