Houve época em que qualquer viagem era uma aventura. Tudo era exploração. Navegantes precisavam ser corajosos, era muito difícil se orientar depois que o litoral sumia no horizonte.Com o passar do tempo e com a descoberta dos instrumentos de precisão, tornou-se possível navegar ao redor do mundo e voltar para casa após alguns anos. As viagens se vulgarizaram, novas descobertas enchiam os jornais de diversas épocas e as pessoas comuns começaram a conhecer o mundo. Os exploradores que arriscavam suas vidas estavam nos picos mais altos, nos desertos e nos polos. Por outro lado, os indivíduos comuns passaram a viajar ao redor do mundo, fazer compras em países distantes, guardar recordações de outras culturas e postar cartões de países remotos. O planeta Terra tornou-se um “lugar turístico”. Será que hoje os verdadeiros exploradores estão confinados em naves espaciais na órbita da Terra ou no caminho da Lua?Haverá ainda algo a ser explorado por nós, pessoas comuns? Está tudo tão trivial. Hoje, em qualquer país da Europa compramos belos souvenires “locais”, todos feitos na China.Atualmente, viagens turísticas são feitas sem a necessidade do planejamento que os antigos precisavam ter – tudo já foi pensado e planejado por algum guia especialista na região. Vendem-se e compram-se viagens para quase qualquer lugar. Viaja-se para centenas de destinos com o conforto e a segurança da nossa própria casa. Podemos conhecer os mais diversos lugares e saciar nossa curiosidade ao redor do planeta - coisas que historicamente foram negadas aos nossos nobres antepassados. Vulgarizou-se o ato de viajar e conhecer o mundo.
Será que explorar perdeu o sentido?Ou ainda há algo a ser explorado com seriedade?Será que tudo que nos resta são viagenscom muita segurança e pouca graça? Olhar imagens deslumbrantes na internet, todas retocadas digitalmente? Ou resta algo selvagem a conhecer de perto, ainda que tamanha proximidade com a Natureza traga algum desconforto ou risco?
A resposta é: Sim, Há. E muito!Além de oportunidades de explorar o planeta Terra, temos hojea necessidade de conhecê-lo, além de tudo, com o nobre objetivo de preservá-lo. E o cidadão comum, transformado num turista-explorador, com curiosidade e deslumbramento pelas belezas da Terraé quem poderá conhecer, divulgar e proteger as belezas naturais que nos restam!
E que belezas são estas?
A Antártica e o Ártico eram, há pouco mais de um século, lugares pouco conhecidos, envoltos em mistérios, e eram fontes inesgotáveis de lendas e mitos fantásticos. Os primeiros a voltarem de lá traziam histórias inacreditáveis de peixes gigantescos, baleias, milhares de aves estranhas que caminham juntas, nadam com agilidade, mas não voam. Pouco a pouco aventureiros mais ousados passaram a adentrar o continente do Sul a pé, percorrendo distâncias cada vez mais longas; no verão, andando durante meses de luz sem fim a temperaturas muito abaixo de zero Celsius. Mal vestidos, com o que sua época lhes podia oferecer, mal alimentados, com pastas salgadas de carne e gordura adoeciam por escorbuto, enregelamento paralisante e simples exaustão. Muitos se perderam e deixaram suas vidas na imensidão do branco gelado, nas neblinas sem fim e nas fendas sem fundo, onde apenas o vento incessante testemunhava suas mortes.
Mas o “nosso mundo” é diferente! Apenas um século depois, cá estamos nós visitando a Antártica pela internet. Porém, alto lá! Isto não tem qualquer valor para nossas vidas! Precisamos sim viajar para conhecer. E mais, disse Amyr Klink em um de seus livros,“um homem precisa viajar para lugares que não conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é, ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos e simplesmente ir ver”.
Resta uma pergunta que faz toda a diferença: na vida atual de um cidadão comum há como explorar algo do mundo, ou tudo o que nos resta é sermos turistas?
O magistral livro “Antarctica theLastContinent” (escrito pelo explorador e naturalista Kim Heacox e publicado pela NationalGeographicSociety) ajuda a responder esta pergunta. Ele afirma que, neste final do primeiro século de presença humana na Antártica, cada um de nós é ainda um explorador... cada um, cientista ou turista, ainda chega com um senso de missão e retorna com uma sensação de realização.
Pessoalmente, tive a grata satisfação de ter ido à Antártica movido pelo amor à Natureza e pelo desafio de fotografar o ambiente radical que os locais oferecem. Fotografar em temperaturas negativas apresenta alguns desafios adicionais quanto a lentes e baterias. Estando lá, percebi-me envolvido pelo mundo ao meu redor como quem se envolve espiritualmente com algum conceito religioso novo, diferente de tudo e deslumbrante. Pisar na Antártica é arrebatador. Chega-se com uma curiosidade sem fim e explora-se com um deslumbramento full-time. Sentimo-nos como crianças, sorrindo sozinhas diante das descobertas da infância. Mas, olhando ao redor, constatamos que há varias outras crianças iguais a nós, ostentando os mesmos olhares de infantilidade feliz – exatamente como nos sentimos. A sensação de fantasia coletiva atenua um pouco nosso medo de parecermos ridículos.
Mas é impossível presenciar a vida selvagem da South Georgia e da Península Antártica e voltar para casa considerando esta viagem apenas mais uma viagem turística. Concordo com o autor do livro – Retornei com a sensação de ter conquistado algo. No entanto, minha sensação pessoal é de incompletude. Há algo importante faltando, importante demais, como ter testemunhado algo que não pode permanecer escondido. Fazer o quê agora? Há algo a serpropagado. Obviamente, algo que já é conhecido, mas permanece ignorado pela maioria de nós. Primeiro, a Antártica é mais que um continente, muito mais. E, segundo, a Antártica está sendo alterada a cada dia que passa. Não pelos seus visitantes – cheios de critérios e cuidados. Mas pelo mundo industrial predatório dos séculos XX e XXI - ou seja, por nós. A internet e a literatura antártica são fartas de dados e textos esclarecendo a urgência de que se faça algo pelo clima. E as regiões polares são os palcos onde este desmantelamento da vida natural se mostra mais evidente e radical. Como explorador diletante e como fotógrafo entusiasta, acho de grande importância que turistas-exploradores conscientes e entusiasmados visitem a Antártica e o Ártico e, devidamente engajados como habitantes do planeta Terra, pensem e ajam juntos como cidadãos do futuro. A literatura é abundante sobre o que é importante fazer.
Quando percebi que arranjar um jeito de ir à Antártica era uma meta de vida, me senti desamparado. Não sabia como resolver algumas difíceis equações – Por onde começar? Existem viagens comerciais para a South Georgia? A que custos se poderia viajar? Esta ilha – importante para a história das explorações e para a fotografia da vida selvagem - fica a meio caminho entre a América do Sul e a África, seria possível numa mesma viagem ir à Antártica? Minha esposa, pacientemente fez buscas online. Quando conhecemos a Zelfa, as dúvidas passaram a cair como dominós, apresentamos nossas ideias e ela nos apresentou o Gunnar – o medo evaporou como álcool. Conhecemos a empresa Antarpply e o M/V Ushuaia, navio de pesquisa convertido em barco de turismo polar. O planejamento foi uma fase inquietante e desafiadora, horas de buscas e leituras. A viagem, finalmente, foi o coroamento do sonho tornando-se realidade. Sem qualquer risco de pieguice, não há nada que tenhamos feito antes que se equipare ao que vimos e vivemos. Apenas uma equipe que rompe as amarras de profissionalismo e competência e mergulha sem medo na convicção de uma missão e na paixão pelo que faz pode oferecer o que tivemos das Ilhas Falklands, South Georgia e na Península Antártica.
Hoje esta parte é passada. Mas as memórias são para todo o futuro. Claro, voltaremos... E a missão – não cumprida ainda – é corajosamente nos envolvermos com o que o Planeta necessita de nós. A Antártica e o Ártico estão gritando. Precisamos ouvir. E, para isto, é bom que – pelo menos uma vez – cheguemos mais perto.
Obrigado Zelfa pelos ensinamentos e pelo espaço! Obrigado Gunnar pela visão de explorador moderno. Ela ficará conosco para sempre.
Júlio Eduardo Zenkner
A bordo do M/V USHUAIA
13/outubro – 01/novembro de 2017